EXEGESE DE GÊNESIS 3:22-24

 SUMÁRIO

 

1.      O TEXTO.. 4

1.1.       OS LIMITES DA PASSAGEM... 4

1.2.       COMPARAÇÃO DE VERSÕES. 5

2.      A TRADUÇÃO.. 8

2.1.       AMBIGUIDADES. 8

3.      OS CONTEXTOS. 15

3.1.       AUTORIA.. 15

3.2.       CONTEXTO HISTÓRICO E DATA DA PASSAGEM... 16

4.      GÊNERO LITERÁRIO E SUAS FUNÇÕES NA EXEGESE VETEROTESTAMENTÁRIA. 18

4.1.       PRESENÇA DE UMA ESTRUTURA NARRATIVA.. 18

4.2.       WAW + PERFEITO NA FUNÇÃO CONSECUTIVA.. 19

4.3.       DESCRIÇÃO DE UM CENÁRIO.. 19

4.4.       EXISTÊNCIA DE UM ELENCO.. 19

4.5.       PONTO DE VISTA.. 19

4.6.       USO DO DEMONSTRATIVO הֵן. 20

4.7.       CONTRASTE. 20

4.8.       PARALELISMO.. 20

5.      A ESTRUTURA.. 20

6.      ANÁLISE ORTOGRÁFICA E MORFOLÓGICA.. 25

6.1. ANÁLISE DE DADOS GRAMATICAIS RELEVANTES. 25

6.2. ANÁLISE ORTOGRÁFICA E MORFOLÓGICA DE GENESIS 3:22 -24. 26

7.      CONTEXTO BÍBLICO.. 28

7.1.       O USO DA PASSAGEM EM OUTROS LUGARES DA BÍBLIA.. 28

7.2.       DOGMÁTICA DA PASSAGEM... 30

7.3.       CARACTERÍSTICAS SEMÁTICAS ESPECIAIS. 32

8.      APLICAÇÃO.. 34

8.1.       A NATUREZA DA APLICAÇÃO NO TEXTO.. 34

8.2.       ÁREAS DE APLICAÇÃO DA PASSAGEM... 35

8.3.       LIMITES DA APLICAÇÃO DA PASSAGEM... 36

9.     REFERÊNCIAS. 37

 


 

1.    O TEXTO

1.1. OS LIMITES DA PASSAGEM

 

Os limites do texto escolhido (Gn 3:22-24) podem ser percebidos pela divisão do parágrafo sinalizado por dispositivos intitulados Petuhá e Setumá. De acordo com Carlos Alberto Ribeiro de Araújo “a divisão em parágrafos do texto hebraico data provavelmente do período talmúdico. Todos os livros da Bíblia Hebraica, com exceção dos Salmos, foram divididos em parágrafos” (Araújo, 2006).

Segundo Edson de Farias Francisco (2008), “antes do início de cada parágrafo, é colocada uma letra hebraica em tamanho menor para designar se o mesmo é aberto ou fechado: uma pequena letra פ () para aberto e uma letra ס (samekh) para o fechado." Em nosso caso temos ambos os símbolos ambientando o presente parágrafo. Tais símbolos podem ser visualizados a seguir:







Ademais, a perícope 3:22-24, a qual trata da expulsão do homem do Jardim do Éden, faz parte de uma estrutura quiástica, sendo relacionado ao parágrafo 2:5-15 referente a colocação do homem no Jardim do Éden, conforme se vê abaixo:

 

a – A colocação do homem no Jardim do Éden (2:5-15)

b – O mandamento divino e a organização da vida (2:16-25)

c – Desobediência do casal no Jardim do Éden (3:1-7)

b’ – O juízo divino e a reorganização da vida (3:8-21)

a’ – A expulsão do homem do Jardim do Éden (3:22-24)

Por fim, vemos uma mudança espacial. O capítulo 3 se desenrola, primeiramente, no centro do jardim (Gn 3:1-6), contendo ali o diálogo entre a mulher e a serpente com a subsequente ação de comer do fruto.

A segunda gama de diálogos (Gn 3:7-21) ocorre sem uma especificação geográfica clara.

Já no capítulo 3 do livro de Gênesis, versículos 22 a 24, a voz divina pronuncia a direção do deslocamento, que é do centro do jardim para fora dele, mais precisamente na direção leste (Gn 3:24).

Nosso texto 3:22-24, conforme o quiasmo descrito acima, corresponde à 2:5-15 no sentido de que Deus é o único ator e o homem é apenas passivo. Alguns termos são peculiares às cenas: “no Leste”, “jardim do Éden” e “árvore da vida”. Essa lembrança da cena retratada em 2:5-15 dá completude à narrativa, mas também serve para apontar de forma mais pungente exatamente o que o homem perdeu.

No momento em que o jardim foi plantado, este estava situado ao "leste" (מִקֶּדֶם) (Gn 2:8), e no ato de expulsão, o ser humano também se encontra ao "leste" (Gn 3:24). Conforme Walsh (1977), “a dinâmica espacial, por conseguinte, referente ao jardim, é revertida entre os capítulos 2 e 3: o homem, colocado no jardim, é impedido de entrar nele”


1.2. COMPARAÇÃO DE VERSÕES

 

A seguir apresentamos 8 versões comparadas:

 

a.       Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS)

וַיֹּאמֶר יְהוָה אֱלֹהִים הֵן הָֽאָדָם הָיָה כְּאַחַד מִמֶּנּוּ לָדַעַת טוֹב וָרָע וְעַתָּה פֶּן־יִשְׁלַח יָדוֹ וְלָקַח גַּם מֵעֵץ הַֽחַיִּים וְאָכַל וָחַי לְעֹלָֽם׃

וַֽיְשַׁלְּחֵהוּ יְהוָה אֱלֹהִים מִגַּן־עֵדֶן לַֽעֲבֹד אֶת־הָאֲדָמָה אֲשֶׁר לֻקַּח מִשָּֽׁם׃

וַיְגָרֶשׁ אֶת־הָֽאָדָם וַיַּשְׁכֵּן מִקֶּדֶם לְגַן־עֵדֶן אֶת־הַכְּרֻבִים וְאֵת לַהַט הַחֶרֶב הַמִּתְהַפֶּכֶת לִשְׁמֹר אֶת־דֶּרֶךְ עֵץ הַֽחַיִּֽים׃ ס

b.       Septuaginta (LXX)

καὶ εἶπεν ὁ θεός ἰδοὺ Αδαμ γέγονεν ὡς εἷς ἐξ ἡμῶν τοῦ γινώσκειν καλὸν καὶ πονηρόν καὶ νῦν μήποτε ἐκτείνῃ τὴν χεῖρα καὶ λάβῃ τοῦ ξύλου τῆς ζωῆς καὶ φάγῃ καὶ ζήσεται εἰς τὸν αἰῶνα.

καὶ ἐξαπέστειλεν αὐτὸν κύριος ὁ θεὸς ἐκ τοῦ παραδείσου τῆς τρυφῆς ἐργάζεσθαι τὴν γῆν ἐξ ἧς ἐλήμφθη.

καὶ ἐξέβαλεν τὸν Αδαμ καὶ κατῴκισεν αὐτὸν ἀπέναντι τοῦ παραδείσου τῆς τρυφῆς καὶ ἔταξεν τὰ χερουβιμ καὶ τὴν φλογίνην ῥομφαίαν τὴν στρεφομένην φυλάσσειν τὴν ὁδὸν τοῦ ξύλου τῆς ζωῆς.

 

c.       Vulgata Latina

Et ait ecce Adam factus est quasi unus ex nobis sciens bonum et malum nunc ergo ne forte mittat manum suam et sumat etiam de ligno vitae et comedat et vivat in aeternum

Emisit eum Dominus Deus de paradiso voluptatis ut operaretur terram de qua sumptus est

eiecitque Adam et conlocavit ante paradisum voluptatis cherubin et flammeum gladium atque versatilem ad custodiendam viam ligni vitae

 

d.       Versão Revista Almeida e Atualizada (ARA)

²² Então, disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente.

²³ O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado.

²⁴ E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.

 

e.       Versão Revista Almeida e Corrigida (ARC)

²² Então, disse o Senhor Deus: Eis que o homem <é como> um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente,

²³ o Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra, de que fora tomado.

²⁴ E, havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida.

 

f.        Nova Almeida Atualizada (NAA)

²² Então o Senhor Deus disse:

  — Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. <É preciso impedir> que estenda a mão, tome também da árvore da vida, coma e viva eternamente.

²³ Por isso o Senhor Deus o lançou fora do jardim do Éden, para cultivar a terra da qual havia sido tomado.

²⁴ E, depois de lançar fora o homem, Deus colocou querubins a leste do jardim do Éden e uma espada flamejante que se movia <em todas as direções>, para guardar o caminho da árvore da vida.

 

g.       Nova Tradução da Linguagem de Hoje (2000)

22 Então o Senhor Deus disse o seguinte:

— Agora o homem se tornou como um de nós, <pois> conhece o bem e o mal. Ele não deve comer a fruta da árvore da vida e viver para sempre.

23 Por isso o Senhor Deus expulsou o homem do jardim do Éden e fez com que ele cultivasse a terra da qual havia sido formado. 24 Deus expulsou o homem e no lado leste do jardim pôs os querubins e uma espada de fogo que <dava voltas em todas as direções>. Deus fez isso <para que ninguém chegasse perto> da árvore da vida.

 

h.       Nova Versão Internacional (NVI)

 

22 Então disse o Senhor Deus: “Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. <Não se deve, pois, permitir> que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre”. 23 Por isso o Senhor Deus o mandou embora do jardim do Éden para cultivar o solo do qual fora tirado. 24 Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.

 

2.    A TRADUÇÃO

2.1.  AMBIGUIDADES

 

As seguintes palavras abaixo foram encontradas em ambiguidade quanto ao seu significado:

אָדָם

Strong (H120)

  1. homem, ser humano
  2. homem (como indivíduo), humanidade (sentido intencionado com muita frequência no AT)
  3. Adão, o primeiro homem
  4. cidade no vale do Jordão

VINE

1.     “Homem, varão, gênero humano, pessoas, alguém (indefinido), Adão (o primeiro homem)”.

2.     Relacionado com o verbo 'adam, “avermelhar-se”, e provavelmente concerne com a vermelhidão original da pele humana

3.     Às vezes, 'adam identifica um “grupo de homens” limitado e particular (Jr 47.2).

4.     Também é usado em referência a qualquer determinado homem, ou a qualquer macho ou fêmea.

 

 

Dicionário da Bíblia de Almeida (Sociedade Bíblica do Brasil)

1.      Qualquer indivíduo pertencente à espécie animal racional (Gn 2:15). O ser humano é composto de corpo e alma. Foi criado à imagem e semelhança de Deus, podendo, por isso, ter comunhão com ele (Gn 1:26);

2.      Os seres humanos; humanidade (Gn 1:26).

3.      Ser humano do sexo masculino (Pv 30:19).

4.      Ser humano na idade adulta (1Co 13:11).

5.      “Velho homem” é a nossa velha natureza humana pecadora (Rm 6:6) em contraste com o “novo homem”, que é a natureza espiritual do regenerado (Ef 2:15).

6.      “Homem interior” é o eu mais profundo (Rm 7:22) em contraste com o “homem exterior”

Diante do exposto, verifica-se uma ampla variedade de sentidos na palavra אָדָם sendo possível entendermos das diversas maneiras acima. No entando, tendo em vista os objetos da ação de “comer da arvore” (עֵץ חַי אָכַל) serem Adão e sua esposa Eva, entendemos o vocábulo אָדָם como designativo de ser humano, isto é, homem e mulher.

 

שָׁלַח

Strong (H7971)

  1. enviar, despedir, deixar ir, estender;
    1. (Qal)
      1. enviar
      2. esticar, estender, direcionar
      3. mandar embora
      4. deixar solto
    2. (Nifal) ser enviado
    3. (Piel)
      1. despedir, mandar embora, enviar, entregar, expulsar
      2. deixar ir deixar livre
      3. brotar (referindo-se a ramos)
      4. deixar para baixo
      5. brotar
    4. (Pual) ser mandado embora, ser posto de lado, ser divorciado, ser impelido
    5. (Hifil) enviar

Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento

 

A raiz denota separação de fato entre pessoas ou grupos, expulsão. O ugarítico confirma o sentido de “expulsar”. Ex.: Adão e Eva foram expulsos do jardim do Éden pelo anjo que tinha a espada flamejante e impedidos de voltar (Gn 3.24). Caim foi expulso da presença de Deus e obrigado a tornar-se peregrino indefeso entre os homens (Gn 4.14), o castigo pelo fratricídio que cometeu. Israel devia desalojar os cananeus da terra prometida e expulsá-los (Êx 23.31).

 

VINE

 

1.      Lançar fora.

2.      Enviar, despedir (Gn 18.16).

3.      Este verbo pode significar “livrar-se” de algo: “Elas encurvam-se, para terem seus filhos, e lançam de si as suas dores [de parto]” (Jó 39.3).

4.      Essa palavra também significa pôr algo em chamas, como em Jz 1.8: “puseram a fogo a cidade”.

 

Após análise das diversas opções de tradução para o verbo שָׁלַח, verificamos que melhor se adaptaria ao contexto a ideia de “expulsão, lançar fora com violência, entregar”. Vemos tal ato como uma punição da parte de Deus, mas também como um livramento da permanência eterna do ser humano na condição de distância de Deus.

 

קֶדֶם

Strong (H6924)

  1. oriente, antiguidade, frente, que está diante de, tempos antigos
    1. frente, da frente ou do oriente, em frente, monte do Oriente
    2. tempo antigo, tempos antigos, antigo, de antigamente, tempo remoto
    3. antigamente, antigo (advérbio)
    4. começo
    5. oriente adv.
  2. rumo a leste, para ou em direção ao oriente

Dicionário Bíblico Wycliffe

 

1.      (קֶדֶם, lit., “frente” ou “diante”; e מִזְרַח, “o local da aurora”; gr. anatole, “o nascer” do sol).

2.      Os hebreus dividiam o mundo em quatro partes e as descreviam como “cantos da terra” (Is 11.12; Ap 7.1; 20.8), ou como os “quatro ventos” (Ez 37.9). Como muitos povos semitas, os hebreus olhavam para o leste, “o local da aurora” como sua direção básica.

 

Dicionário Online - estudiosbiblicos.org

 

1.      קֶדֶם, prop. o que está na frente, a parte frontal;

2.      מִזְרַח, indica o nascer ou nascer do sol;

3.      A palavra קֶדֶם, “o que está na frente” ou “na frente” indica o Leste. Em algumas ocasiões, מִזְרַח e קֶדֶם complementam-se: “A largura do átrio na frente, isto é, para o leste” (Êxodo 27:13; cf. Jos. 19:12).

4.      A terra do leste, אֶרֶץ קֶדֶם, é a região para a qual Abraão enviou os filhos de suas concubinas (Gn 25:6), prox. no extremo sudeste da Palestina, onde viviam os beduínos. Em Gen. 29:1 este nome é aplicado à região de Harran ao longo do rio Balih, no sul da Turquia. Por outro lado, a expressão “filhos do Oriente” é usada, sem contexto geográfico, para se referir aos midianitas e amalequitas, que estão ao sul e sudeste da Palestina (Gn 10:30; 25:6, 15); 29:1; Juízes 6:3; 33; 7:12; 8:10).

5.      O Oriente é por excelência “o lugar onde o sol nasce”, מִזְרַח שֶׁמֶשׁ (Is. 41:25; Juízo 11:18; cf. Mt. 2:1, 2, 9; 8:11; 24:27; Lucas 13:29; Apocalipse 7:2; 16:12; 21:13). A oração na porta oriental do Templo de Jerusalém tinha a sua importância: durante os equinócios da primavera e do outono, os primeiros raios do sol nascente, arautos da glória de Deus, podiam penetrar no Santo dos Santos.

Escolhemos a opção de tradução do termo קֶדֶם como “leste”, “parte frontal”, “lado do nascer do sol” mais pelas indicações posteriores do cânon bíblico que do próprio texto em análise, tendo em vista que as muitas alternativas não possuem grande variedade de sentidos.

No entanto, a escolhe do termo “leste” assemelha-se muito à entrada do templo futuro, visto pelo Profeta Ezequiel (Ez 44.1). Segundo Victor P. Hamilton, “Deus posiciona os querubins e a espada giratória de fogo a leste do jardim do Éden para evitar a reentrada no jardim, como se a reentrada no jardim ocorresse apenas através de uma abertura em seu lado leste, assim como a entrada no complexo do tabernáculo/templo era por um portão no lado leste.” (Hamilton, 1990, p. 89)

 

אֱלֹהִים

Strong H0430

 

1-) (plural)
1a-) governantes, juízes
1b-) seres divinos
1c-) anjos
1d-) deuses
2-) (plural intensivo - sentido singular)
2a-) deus, deusa
2b-) divino
2c-) obras ou possessões especiais de Deus
2d-) o (verdadeiro) Deus
2e-) Deus

 

VINE

 

1.      Deus, deuses;

2.      Forma plural comum de Eloah, tido por muitos como plural de majestade.

3.      Frequentemente traduzido como vocativo, quando o adorador está falando diretamente a Deus.

 

DICIONÁRIO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA DO A.T.

1)      Deus

2)      Deuses, deuses

3)      Juízes

4)    Anjos

 

Diante do exposto acima, decidimos pelo sentido majoritariamente escolhido pelos tradutores e comentaristas, isto é, Deus com um plural intensivo - sentido singular. Optamos por essa tradução por considerarmos como indicativo majestático.

 

הַמִּתְהַפֶּכֶת

Strong H2015

1-) Virar, subverter, revolver

1a-) (Qal)

1a1-) revolver, subverter

1a2-) virar, voltar, virar para baixo

1a3-) mudar, transformar

1b-) (Nifal)

1b1-) virar-se, voltar

1b2-) mudar alguém

1b3-) ser perverso

1b4-) ser virado, ser virado, ser mudado, ser voltado contra

1b5-) ser revertido

1b6-) ser revolvido, ser derrubado

1b7-) estar virado

1c-) (Hitpael)

1c1-) transformar-se

1c2-) virar-se para uma e outra direção, virar para qualquer direção

1d-) (Hofal) tornar-se contra

 

Concordância Exaustiva NAS

Tornar-se (1), veio (1), mudar (1), mudou (6), muda (1), veio (1), drenado (1), deu (1), teve um mudar (1), inundar (1), derrubar (5), derrubar (5), derrubar (3), derrubar (1), derrubar (1), derrubar (2), pervertido (2), refreado (1 ), restaurar (1), refazer (1), deslocar (1), tombar (1), virar (6), virar (44), virar de lado (1), virar para trás (1), virar (1), girando (1), girando (1).

 

Brown-Driver-Briggs Léxico hebraico e inglês

Qal 

A. Virar, com acusativo: por exemplo, virar as; um prato; a mão e, portanto, os cavalos de uma carruagem, seguido por לוֺ virar o vento ( רוּחַ ; ou seja, trazer de um bairro diferente).

B. Derrubar,

C.  Transformar (1) seguido de acusativo, ou seja, restaurar a saúde; (2) perverter (3) seguido de acusativo com infinitivo; (4) vire para, em uma poça de água; em terra seca, rios em sangue, lamentando em alegria, justiça em absinto, festeja em luto; maldição em bênção sombra da morte pela manhã.

Niphal 

A. Vire-se, vire, volte, desvie o salmo 78:57 ; vire de um lado para o outro voltadas; virar contra; vire para 

b.  Mudança (si mesmo) seguido de adjetivo predicado;

C. Seja perverso,

D. Ser derrubado, derrubado

E. Ser revirado,

Hithpael 

1 Eu me viro para um lado e para outro, em todos os sentidos, da espada flamejante - Gênesis 3:24.

2 transforme-se,

Hophal 

1.Foram lançados sobre mim terrores 

Em nosso texto, o vocábulo encontra-se no Hithpael, logo, temos aqui um sentido de “me viro para um lado e para outro, em todos os sentidos”. Uma espada que “vira-se para uma e outra direção” ou ‘’vira-se para qualquer direção”.

2.2. Tradução própria

Levando em consideração a discussão acima, segue tradução própria do texto em análise:

²² Então, disse o Senhor Deus: O ser humano se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida e viva eternamente.

²³ O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado.

²⁴ E, expulso o homem, colocou querubins ao leste do jardim do Éden e uma espada flamejante que se movia em todas as direções, para guardar o caminho da árvore da vida.

 

3.    OS CONTEXTOS

3.1.  AUTORIA

Nosso texto está inserido no que os estudiosos chamam de Pentateuco. A unidade do texto e a tradição do Pentateuco, isto é, os cinco primeiros livros canônicos, deixam implícito que estamos tratando de um autor apenas. De acordo com a tradição sobre a autoria do Pentateuco, Moisés o escreveu o Pentateuco para Israel no deserto.

O título do livro de Gênesis deriva-se do título adotado pela versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta − Γένεζιρ. Os israelitas, por sua vez, usam como título a primeira palavra do livro, בְּרֵאשִׁית que quer dizer “no princípio.”

Embora não tenha nenhuma declaração no livro de Genesis nem em outro livro do Antigo Testament (AT) que afirme a autoria mosaica, existem várias indicações que Moisés fora o altor desse livro. O Novo Testamento (NT) faz declarações que apontam para a autoria mosaica do livro, como João 5.46, na qual Jesus refere-se aos “escritos” de Moisés, indicando que o próprio Jesus afirma que Moisés foi o autor dos escritos atribuídos a ele.

Pode ser notado também que Moisés escreveu algumas porções que foram atribuídos a ele (e.g. Êx 17.14; 34.27; Nm 33.2). Em Levítico, expressões como “E o Senhor disse a Moisés”. Ademais, as passagens: Deuteronômio 17.18; 27.1-8; 31.9,24 são importantes pois trazem referências à escrita de Moisés.

Por fim, conforme bem atentou Bruce Waltke, a educação de Moisés, bem como seus dons espirituais e o chamado de Deus “singularmente o qualificaram para compor o conteúdo e formas essenciais de Gênesis e do Pentateuco.” (Waltke, 2010, p. 19)

3.2. CONTEXTO HISTÓRICO E DATA DA PASSAGEM

Nosso texto sob análise enquadra-se temporalmente na histórica primeva da humanidade. Poucos dados históricos precisos sobre esse período estão disponíveis.

A humanidade era restrita a esses dois indivíduos - Adão e Eva. O ambiente era paradisíaco, restrito ao Édem, no entando, expulsos, veem-se em um ambiente hostil, numa terra “maldita (...) coberta de cardos e abrolhos” (Gn 3:17,18). Esta descrição representa a ideia de que a terra fora do Éden se tornou um lugar mais hostil e difícil para a humanidade.

Stanley A. Ellisen nos apresenta um quadro em que vemos possivelmente a que data o evento registrado na passagem em análise ocorreu (Ellisen, 2007).

Cronologia do Livro de Gênesis

NOME

Data (Ano Hom.)

Data (a. C.)

1.      Adão

0

4173

2.      Sete

130

4043

3.      Enos

235

3938

Fonte: Conheça melhor o Antigo Testamento: um guia com esboços e gráficos explicativos dos primeiros 39 livros da Bíblia. Stanley A. Ellisen - São Paulo: Vida Nova, 2007. Pág. 30. (ADAPTADO)

 

 

Pelo guadro supracitado, podemos cituar o evento registrado em Gênesis 3 entre 4173 a.C e 4043 a. C. Segundo Bruce Waltke, “A evidência interna é corroborada por textos descobertos por Mari, Nuzi, Alalakh e Ugarit da Era Média do Bronze” (Waltke, 2010, p. 28), esse autor ainda nos informa que “vários outros aspectos na narrativa só se enquadram no horizonte do Bronze Médio.

Segundo a Dra. Ana Luíza Mello Santiago de Andrade[1] a Idade do Bronze foi o período que ficou conhecido pelo desenvolvimento de ferramentas e utensílios feitos com o bronze como matéria-prima. Segundo essa autora:

O bronze é a liga metálica feita a partir da junção de cobre com estanho que resulta em um material resistente e ótimo para produção de ferramenta. Outro ponto interessante do manuseio de ligas metálicas como o cobre e o estanho é o fato de elas terem sido fabricadas conscientemente, o que demonstra que os homens e as mulheres deste período intencionalmente fabricavam o bronze, sabendo de sua durabilidade e qualidade para os materiais que produziam (Andrade, 2022)

O contexto de nosso passagem, acima de tudo, é de um ambiente em que, antes tinha-se paz com Deus e agora os seres humanos (Adão e Eva), encontram-se frente aos castigos por sua desobediencia.

A terra deverá ser trabalhada, e com muito suor, ela produzirá o alimento para os seres humanos expulsos da presença imediata de Deus. Bem sintetizou Flávio Josefo a esse respeito: “Deus impôs a todos o devido castigo, expulsou Adão e Eva daquele jardim de delícias" (Antiguidades Judaicas, Livro I. Cap. 1. V. p. 77)

A presença da árvore da vida no jardim indicava que o homem haveria de partilhar do benefício da vida eterna. Essa era uma demosntração da graça de Deus. Como conclui Derek Kidner, “em tudo isso, a árvore desempenhava seu papel nas oportunidades que dá.” (Kidner, 2008, p. 60). Dessa forma, no capítulo 2 de Gênesis temos o Éden como um lugar da presença de Deus e, tristemente, em nosso texto (3:22-24), vemos o ser humano expulso dessa situação de privilégio e honra.

O contexto geográfico de nossa passagem é, de certa forma, móvel. Temos a saída de um local de paz e graça para um local ferido pelas maldições divinas e destituídas da glária de Deus. Como disse o Apóstolo Paulo: “Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto” (Rm 8:22). João Calvino comentando esse verso, disse:

O significado é que as criaturas não estão contentes em seu estado atual (...) estão como se estivessem em trabalho de parto; para uma restauração a um estado melhor os espera. Ao dizer que eles gemem juntos , ele não significa que eles estejam unidos por ansiedade mútua, mas ele os une como companheiros de nós. A partícula até então ou, até hoje, serve para aliviar o cansaço da languidez diária; pois se as criaturas continuaram por tantas eras em seus gemidos, quão indesculpável será nossa suavidade ou preguiça se desmaiarmos durante o curto curso de uma vida sombria (Calvino, Comentário de Romanos)

 

4.    GÊNERO LITERÁRIO E SUAS FUNÇÕES NA EXEGESE VETEROTESTAMENTÁRIA.

A maior parte do texto em Gênesis 3:22-24 é narrativa, ou seja, ele conta uma história. Nesse caso, a história descreve o momento em que Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden após sua desobediência ao comerem o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal.

O presente texto de nossa exegese, assim, possui uma estrutura que caracteriza o gênero narrativa, bem cono a configuração de relato histórico. Podemos observar as seguintes particularidades que nos levam a esta conclusão:

4.1. PRESENÇA DE UMA ESTRUTURA NARRATIVA

O texto segue uma estrutura narrativa, com uma progressão de eventos. Começa com a desobediência de Adão e Eva, passa pela punição divina e culmina na expulsão deles do Jardim do Éden. Essa estrutura ajuda a criar uma narrativa coesa e compreensível.

Segundo Robert B. Chisholm Jr., “uma narrativa pode começar de diversas maneiras, mas sua estrutura básica consiste em uma série de orações principais dispostas no seguinte padrão: conjunção (waw-consecutivo) + verbo (forma prefixada breve/pretérito) + sujeito (se for indicado).” (Chisholm, 2015). O presente texto de nossa exegese possui uma estrutura narrativa com função sequencial (e/ou consecutiva).

Muitos gramáticos chamam o padrão verbal básico empregado na narrativa de “waw-consecutivo com imperfeito”. Robert B. Chisholm Jr denomina de “forma prefixada breve/pretérito”. Esse autor usa à forma em questão como padrão wayyiqtol.

וַיֹּאמֶר יְהוָה אֱלֹהִים

“Então, disse o Senhor Deus...”

Essa forma wayyiqtol inicia a oração que descreve um evento ocorridos em uma sequência temporal e/ou lógica. No caso, a expulsão do casal do Jardim do Édem.

4.2. WAW + PERFEITO NA FUNÇÃO CONSECUTIVA

Segundo Robert B. Chisholm Jr “às vezes, a construção waw + perfeito introduz uma consequência do que a precede.”, em nosso texto sob análise, וַיֹּאמֶר o waw inicial trás justamente esse sentido consecutivo de ideias.

4.3. DESCRIÇÃO DE UM CENÁRIO

De modo geral, as narrativas possuem um cenário. Com nosso texto não é diferente. Uma história geralmente tem um ambiente físico (ou dramático) explícito. No trecho bíblico em análise, o cenário é duplo: O Jardim do Édem e a Terra, destino dos expulsos.

A narrativa tem também um contexto temporal, bem como contexto histórico-cultural conforme já estudado anteriormente.

4.4. EXISTÊNCIA DE UM ELENCO

O termo "elenco" refere-se a um grupo de personagens que desempenham papéis em uma obra narrativa. Toda narrativa possui um elenco. Em nosso texto, o elenco é constituído por: Deus, Adão e Eva. Esses personagens fazem parte do enredo narrativo.

4.5. PONTO DE VISTA

A narrativa reflete o ponto de vista do narrador (que, por inspiração, escreve com autoridade divina). Em nosso texto temos um narrador onisciente, isto é, capaz de saber os detalhes importantes e definitivos para o entendimento do trecho.

Vemos também uma mudança de “narrativa” para “ação dramática”. Isso foi bem percebido por C. F. Keil e Franz Delitzsch. Segundo esses autores:

Para que, depois que o germe da morte tivesse penetrado em sua natureza junto com o pecado, ele não pudesse “tomar também da árvore da vida, comer e viver para sempre (חי) contraído de חיי = חיה, Deus o enviou do Jardim do Eden." Com וישׁלּחהוּ (expulsou), a narrativa passa das palavras para as ações de Deus. (Delitzsch & Keil, 2014, p. 113)

4.6. USO DO DEMONSTRATIVO הֵן

Às vezes, o narrador escreve a partir da perspectiva de um dos personagens e nos convida a nos colocarmos no lugar desse personagem, observando a situação de sua perspectiva. Exemplo disso em nosso texto é presente em Gn 3:22 הֵן הָאָדָם הָיָה eis que o homem se tornou como um de nós”.

Segundo Francis Brown, S. R. Driver e Charles A. Briggs, o uso de הֵן, “em prosa está principalmente confinado a chamar a atenção para algum fato sobre o qual uma ação deve ser tomada, ou uma conclusão baseada.” (The Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew And English Lexicon, pág. 243. Houghton Mifflin Company. 1907)

O autor usa a interjeiçãoהֵן  para nos convidando a participar da perspectiva do personagem, que no caso é o próprio Senhor Deus.

4.7. CONTRASTE

Os narradores às vezes empregam realces literários para estabelecer contrastes. Temos em nosso texto um contraste de ações:

O senhor Deus diz: “que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida”, o Narrador contrasta dizendo: “O Senhor Deus o lançou fora do jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado”.

4.8. PARALELISMO

O texto hebraico frequentemente usa o paralelismo, uma técnica literária em que a mesma ideia é repetida de maneira ligeiramente diferente. Por exemplo, em Gênesis 3:22, encontramos: "וְאַף לָקַחַתָּ מֵעֵץ הַחַיִּים וְאָכַלְתָּ וָחַיֵּי עוֹלָם" (e também tome do fruto da árvore da vida e coma, e viva para sempre). Aqui, a ideia de "comer" e "viver para sempre" é repetida para enfatizar a conexão entre as duas ações.

 

5.    A ESTRUTURA

5.1  ESBOÇO DA PASSAGEM - GN 3:22-23.

 

5.1.1        Gn 3:22

5

4

3

2

1

 

 

 

 

וַיֹּ֙אמֶר֙ יְהוָ֣ה אֱלֹהִ֔ים

 

 

 

הֵ֥ן הָֽאָדָ֖ם הָיָ֣ה כְאַחַ֑ד מִמֶּ֗נּוּ

 

 

 

לָדַ֤עַתְטֽוֹב֙ וָרָ֔ע

 

 

 

וְעַתָּ֥ה ׀ פֶּן־יִשְׁלַ֨ח יָ֜דוֹ

 

 

 

וְלָקַ֤ח גַּם־מֵעֵ֨ץ הַֽחַיִּים֙ וְאָ֣כַל֙ וָחַ֔י לְעֹלָֽם׃

 

 

 

 

 

·         "וַיֹּ֙אמֶר֙ יְהוָ֣ה אֱלֹהִ֔ים" - Introdução do versículo, "E disse o Senhor Deus."

·         "הֵ֥ן הָֽאָדָ֖ם הָיָ֣ה כְאַחַ֑ד מִמֶּ֗נּוּ" - Descrição da humanidade (o homem era como um de nós).

·         "לָדַ֤עַתְטֽוֹב֙ וָרָ֔ע" - Propósito ou objetivo ("para conhecer o bem e o mal").

·         "וְעַתָּ֥ה ׀ פֶּן־יִשְׁלַ֨ח יָ֜דוֹ" - Alerta sobre a possibilidade ("e agora, para que ele não estenda sua mão").

·         "וְלָקַ֤ח גַּם־מֵעֵ֨ץ הַֽחַיִּים֙ וְאָ֣כַל֙ וָחַ֔י לְעֹלָֽם׃" - Consequência da ação ("e tome também do [fruto] da árvore da vida e coma, e viva para sempre").

 

5.1.2.      Gn 3: 23

4

3

2

1

 

 

 

וַיְשַׁ֣לְּחֵהוּ֮ יְהוָה֒ אֱלֹהִ֣ים֒

 

 

מִגַּ֗ן עֵ֤דֶן֙

 

 

לַֽעֲבֹ֣ד אֶת־הָֽאֲדָמָ֔ה

 

 

אֲשֶׁ֥ר לֻקַּ֖ח מִשָּׁ֑ם

 

 

 

 

·         וַיְשַׁ֣לְּחֵהוּ֮ יְהוָה֒ אֱלֹהִ֣ים֒ - Ação ("E o Senhor Deus o lançou").

·         מִגַּ֗ן עֵ֤דֶן֙ - Origem da expulsão ("do jardim do Éden").

·         לַֽעֲבֹ֣ד אֶת־הָֽאֲדָמָ֔ה - Propósito da expulsão ("para trabalhar a terra").

·         אֲשֶׁ֥ר לֻקַּ֖ח מִשָּׁ֑ם - Explicação ("de onde ele foi tirado").

 

5.1.3.      Gn 3: 24

4

3

2

1

 

 

 

וַיְגָֽרֶשׁ֙ אֶת־הָ֣אָדָ֔ם

 

 

וַיַּשְׁכֵּ֖ן מִקֶּ֣דֶם לְגַן־עֵ֑דֶן

 

 

אֶת־הַֽכְּרֻבִ֣ים וְאֵֽת־לַֽהַטַּ֔חַת

 

 

הַֽחֶ֖רֶב לִשְׁמֹֽרֶת־דֶּֽרֶךְ־עֵ֥ץ הַֽחַיִּֽים׃

 

 

 

 

·         וַיְגָֽרֶשׁ֙ אֶת־הָ֣אָדָ֔ם - Ação de Deus ("E Ele expulsou o homem").

·         וַיַּשְׁכֵּ֖ן מִקֶּ֣דֶם לְגַן־עֵ֑דֶן - O destino após a expulsão ("e Ele colocou-o a leste do jardim do Éden").

·         אֶת־הַֽכְּרֻבִ֣ים וְאֵֽת־לַֽהַטַּ֔חַת - O que foi colocado para guardar ("os querubins e a espada flamejante").

·         הַֽחֶ֖רֶב לִשְׁמֹֽרֶת־דֶּֽרֶךְ־עֵ֥ץ הַֽחַיִּֽים׃ - Propósito da guarda ("a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da vida").

 

5.2  PADRÕES DE PENSAMENTO NA PASSAGEM

A passagem de Gênesis 3:22-24 contém vários padrões de pensamento e temas que se repetem ao longo de toda a Escritura. Esses padrões são importantes para entender a mensagem geral da Bíblia e a teologia subjacente. A seguir listamos alguns dos principais padrões de pensamento nessa passagem e como eles se repetem ao longo da Bíblia:

1.                       Expulsão do Paraíso: A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden simboliza a separação da humanidade de Deus devido ao pecado. Esse tema de separação e busca por restauração ou reconciliação com Deus é central em muitos livros da Bíblia.

2.                       Desobediência e Consequências: Em Gênesis 3:22-24, vemos a desobediência de Adão e Eva ao comando de Deus de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Isso resulta em consequências negativas, incluindo a expulsão deles do Jardim do Éden. Esse padrão de desobediência e suas consequências é um tema recorrente na Bíblia, principalmente com Israel no deserto (Êxodo e Números), bem como nos dias dos Juízes (Jz 1) e com os cativeiros. Vemos os homens desobedecendo a Deus e sofrendo as consequências disso.

3.                       Conhecimento do Bem e do Mal: A busca pelo conhecimento é um tema importante na Bíblia. Aqui, o conhecimento do bem e do mal é proibido, mas ao longo da Bíblia, vemos uma busca pelo conhecimento de Deus (Deuteronômio e nos profetas), da sabedoria (Nos livros de sabedoria) e da verdade espiritual.

4.                       Espada Flamejante: Uma espada flamejante é colocada para proteger o caminho de acesso à árvore da vida. Essa imagem da espada flamejante pode ser vista como um símbolo da justiça de Deus, que impede o acesso indiscriminado à vida eterna. Ao longo da Bíblia, a justiça de Deus é um tema importante. Deus posiciona os querubins e a espada giratória de fogo a leste do jardim do Éden, assim como os levitas posteriormente que são colocados como guardas ao redor do tabernáculo e que devem atacar qualquer pessoa que invada o santuário proibido (Nm 1:51, 53).

 

 

5.3  DISCUSSÃO DAS ESTRUTURAS CONSIDERANDO AS UNIDADES EM ORDEM DECRESCENTE

 

וַיֹּ֙אמֶר֙ יְהוָ֣ה אֱלֹהִ֔ים הֵ֥ן הָֽאָדָ֖ם הָיָ֣ה כְאַחַ֑ד מִמֶּ֗נּוּ לָדַ֤עַתְטֽוֹב֙ וָרָ֔ע וְעַתָּ֥ה ׀ פֶּן־יִשְׁלַ֨ח יָ֜דוֹ וְלָקַ֤ח גַּם־מֵעֵ֨ץ הַֽחַיִּים֙ וְאָ֣כַל֙ וָחַ֔י לְעֹלָֽם׃

No versículo 22, encontramos Deus, “Adonai Elohim”, falando. Ele descreve a condição do homem, destacando que o homem agora é como um deles, conhecendo o bem e o mal. No entanto, Deus emite um alerta, preocupado com a possibilidade de o homem estender a mão e comer da árvore da vida, vivendo para sempre.

Este versículo é uma deliberação. Deus dialoga consigo mesmo e observa que o homem se tornou como um de nós no conhecimento do bem e do mal.

 

וַיְשַׁ֣לְּחֵהוּ֮ יְהוָה֒ אֱלֹהִ֣ים֒ מִגַּ֗ן עֵ֤דֶן֙ לַֽעֲבֹ֣ד אֶת־הָֽאֲדָמָ֔ה אֲשֶׁ֥ר לֻקַּ֖ח מִשָּׁ֑ם

No versículo 23, vemos a ação de Deus. Ele envia o homem para fora do Jardim do Éden, com um propósito claro: trabalhar a terra da qual ele foi formado. Isso indica a transição do homem de um estado de vida no Éden para uma existência fora dele.

 

וַיְגָֽרֶשׁ֙ אֶת־הָ֣אָדָ֔ם וַיַּשְׁכֵּ֖ן מִקֶּ֣דֶם לְגַן־עֵ֑דֶן אֶת־הַֽכְּרֻבִ֣ים וְאֵֽת־לַֽהַטַּ֔חַת הַֽחֶ֖רֶב לִשְׁמֹֽרֶת־דֶּֽרֶךְ־עֵ֥ץ הַֽחַיִּֽים׃

Finalmente, no versículo 24, Deus expulsa o homem do Jardim e o coloca a leste do Éden. Ele posiciona querubins e uma espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida. A razão para essa guarda é para evitar que o homem, que foi tirado do Éden, possa retornar e comer da árvore da vida, alcançando a imortalidade.

6.    ANÁLISE ORTOGRÁFICA E MORFOLÓGICA

 

6.1. ANÁLISE DE DADOS GRAMATICAIS RELEVANTES

i)      אָדָםEsse termo pode se referir tanto ao gênero masculino da espécie humana quanto a "ser humano" de forma mais ampla. Portanto, em muitos contextos, pode ser usado para simplesmente significar "pessoa" ou "ser humano", independentemente do gênero. "אָדָם" (adam) é também o nome próprio de Adão, o primeiro homem segundo a narrativa bíblica. Nesse contexto, o termo é usado como um nome próprio específico e se refere ao primeiro ser humano criado por Deus.

 

ii)  כְּאַחַד מִמֶּנּוּ - "Como um de nós". Alguns teólogos veem essa declaração como uma indicação implícita da Trindade, ou seja, Deus se referindo ao Pai, ao Filho (Jesus) e ao Espírito Santo. Nesse caso, "como um de nós" sugeriria uma conversa entre as pessoas da Trindade divina.

Outra interpretação é que "como um de nós" se refere a Deus se dirigindo ao conselho divino, onde seres celestiais ou anjos estão envolvidos na decisão ou discussão sobre a humanidade e a proibição de comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Segundo Gerhard Von Rad, “essa semelhança com Deus não se refere diretamente a Yahweh, mas aos "anjos". A ideia de que o Senhor está rodeado de seres celestes é em si mesmo muito correta no AT (I Re 22,19s, Jó 1; Is 6); Deus se junta aos seres celestiais que o cercam e se esconde nessa pluralidade (...) Temos a prova da exatidão desta interpretação que proponho, em Gn 3:22, passagem onde o plural reaparece e, evidentemente, pelo mesmo motivo.” (Rad G. V., 1982).

Nesse mesmo sentido anda Ephraim Avigdor Speiser, segundo o qual ְּאַחַד מִמֶּנּוּ é uma “referência à companhia celestial que permanece obscura.” (Speiser, 1964).

Por fim, alguns argumentam que "como um de nós" reflete uma forma de linguagem majestática ou plural de honra usada por monarcas ou figuras de autoridade ao se referirem a si mesmos no plural. Nesse caso, Deus estaria falando sozinho, mas usando uma forma de linguagem que denota Sua grandeza.

Victor P. Hamilton segue a linha de pensamento supracitada. Segundo esse autor, “tanto no AT quanto no NT, assim como em textos não-bíblicos, não era incomum referir-se a uma pessoa para oscilar entre o singular e o plural. Um indivíduo poderia ser tratado como “ele” ou “eles”, ou uma pessoa poderia referir-se a si mesma como “eu” ou “nós” (cf. Marcos 5:1ss., especialmente v. 9 – “Meu nome é Legião; porque somos muitos”).” (Hamilton, 1990)

 

 

6.2. ANÁLISE ORTOGRÁFICA E MORFOLÓGICA DE GENESIS 3:22 -24

 

Gênesis 3:22

וַיֹּ֙אמֶר֙

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (ele disse).

יְהוָ֣ה

O Tetragrama, o nome de Deus em hebraico.

אֱלֹהִ֔ים

O nome de Deus, que indica a pluralidade da divindade.

הֵ֥ן

Uma partícula que pode ser traduzida como "eis que" ou "certamente".

הָֽאָדָ֖ם

Substantivo que significa "o homem".

הָיָ֣ה

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (ele era)

כְאַחַ֑ד

Advérbio que significa "como um".

מִמֶּ֗נּוּ

Pronome que significa "dele".

לָדַ֤עַתְטֽוֹב֙

Infinitivo construto do verbo "yada" (conhecer) com o substantivo "tov" (bom).

וָרָ֔ע

Conjuntivo de "ra" (mal).

וְעַתָּ֥ה

Conjuntivo da conjunção "atah" (agora).

פֶן־

Partícula que expressa uma advertência ou medo.

יִשְׁלַ֨ח

Forma verbal de terceira pessoa do singular no futuro (ele enviará).

יָ֜דוֹ

Substantivo que significa "sua mão".

וְלָקַח֙

Forma verbal de terceira pessoa do singular no futuro (ele pegará).

גַּם־

Partícula que significa "também" ou "ainda"

מֵעֵ֨ץ

Preposição "mim" (de) com o substantivo "etz" (árvore).

הַֽחַיִּ֙ים֙

Substantivo que significa "vida".

לְעֹלָֽם

Substantivo que significa "para sempre" ou "eternamente".

 

Gênesis 3:23

וַיְשַׁ֣לְּחֵ֮הוּ

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (Ele o enviou).

יְהוָ֒ה

O Tetragrama, o nome de Deus em hebraico

אֶל־

Preposição que significa "para".

הַֽגָּ֤ן עֵֽדֶן֙

Substantivo que significa "o jardim do Éden".

לַֽעֲבֹ֣ד

Infinitivo absoluto do verbo (trabalhar).

אֶת־

Preposição que marca o objeto direto.

הָֽאֲדָמָ֔ה

Substantivo que significa "a terra".

אֲשֶׁ֥ר

Pronome relativo que significa "que".

לֻקַּ֖ח

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (foi tirado) do verbo "laqach" (tomar).

מִשָּׁ֑ם

Preposição "mim" (de) com o advérbio "sham" (lá).

 

Gênesis 3:24

וַיְגָֽרֶשׁ֙

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (Ele expulsou).

אֶת־

Preposição que marca o objeto direto.

הָֽאָדָ֔ם

Substantivo que significa "o homem".

וַיַּשְׁכֵּ֖ן

Forma verbal de terceira pessoa do singular no passado (Ele fez habitar).

מִקֶּ֣דֶם

Advérbio que significa "a leste".

לְגַן־עֵ֑דֶן

"לְ" Esta é uma preposição que geralmente indica movimento em direção a algo ou uma relação de posse.

"גַן" é um substantivo que significa "jardim".

"עֵדֶן" é um substantivo que se refere ao "Éden" ou ao "Paraíso".

 

7.    CONTEXTO BÍBLICO

7.1. O USO DA PASSAGEM EM OUTROS LUGARES DA BÍBLIA

 

Embora Gênesis 3:22-24 não seja uma passagem frequentemente citada ou referenciada em outros lugares da Bíblia, os temas e elementos abordados nessa passagem desempenham um papel significativo em várias partes das Escrituras.

O tema da expulsão do Éden e o desejo de restauração estão presentes em várias partes da Bíblia. Por exemplo, muitos profetas falam sobre a restauração de Israel e a esperança de um retorno à comunhão com Deus.

A ideia da "árvore da vida" como um símbolo da vida eterna ou comunhão com Deus é retomada no livro do Apocalipse. Em Apocalipse 2:7, Jesus fala sobre aqueles que superam recebendo o direito de comer da árvore da vida no paraíso de Deus.

O tema das consequências do pecado original, incluindo a alienação de Deus e o trabalho árduo, é abordado em várias partes da Bíblia, como na carta de Paulo aos Romanos, onde ele fala sobre a universalidade do pecado e a necessidade da graça.

Por fim, pode ser citado o querubim. Um ser que aparece ao longo de toda a Bíblia. Segundo Bruce K. Waltke:

Como o querubim angélico em Ezequiel 28.14, cuja tarefa possivelmente fosse bloquear a ascensão de alguém ao cimo do trono (cf. Is 14.13), esses seres chamejantes exercem o papel admoestatório de impedir que os pecadores se assenhoreiem da imortalidade. Ocupantes de trono semelhantes a esfinges aladas são atestados em todo antigo Oriente Próximo.

Cabe aqui também o comentário de Derek Kidner:

Os querubins, multiformes e temíveis sustentáculos do trono, nas visões de Ezequiel (cf. Ez 1:5; 10:15), são vistos noutros lugares como guardiães simbólicos do Santo dos Santos, sendo suas formas bordadas no véu que impedia o acesso a ele, e esculpidas em cima da arca (Êx 36:35; 37:7-9). Por ocasião da morte de Cristo, este véu rasgou-se em duas partes (Mt 27:51) e o caminho para Deus foi aberto (Hb 10:19-22), de fato e como símbolo.

Aos querubins foi entregue a tarefa de guardar a entrada do jardim do Éden (Gn 3.24), e diz-se frequentemente que o Senhor Deus mesmo está entronizado acima dos querubins, ou viaja com os querubins por carro (Sl 18.10; Ez 10.1-22). Em cima da arca da aliança no Antigo Testamento havia duas imagens de ouro de querubins, com suas asas estendidas por sobre a arca, e era ali que Deus prometia vir habitar no meio do seu povo. (Êx 25.22; cf. vv. 18-21).

7.2. DOGMÁTICA DA PASSAGEM

 

Essa passagem traz base para muitas doutrinas bíblicas que são desenvolvidas ao longo de toda a bíblia.

Natureza da Humanidade Caída: Gênesis 3:22-24 lança luz sobre a natureza da humanidade caída, que agora está sujeita a trabalho árduo, dor, morte e alienação de Deus. Isso contribui para a compreensão da depravação humana e da necessidade de salvação. Segundo Calvino, “esta é a corrupção hereditária que os antigos designaram de “pecado original”, entendendo pelo termo pecado a depravação de uma natureza antes disso boa e pura, matéria a respeito da qual muita lhes foi a contenção, uma vez que nada seja mais remoto do consenso geral que pela culpa de um só todos se façam culpados e, assim, o pecado se tome comum a todos.” (Calvino, As institutas da Religião Cristã, 2014)

Entre as árvores há uma chamada “árvore viva” ou “árvore da vida”. Seu significado não é explicado, embora duas passagens subsequentes possam nos ajudar de maneiras diferentes. Em Provérbios, “árvore da vida” é uma metáfora para algo que é um meio de transmitir plenitude de vida, e isso faz sentido aqui em Gênesis 2 e 3.

Essa árvore não tinha poder vivo em si mesma, mas se Deus declara que ela podia transmitir vida, então podia fazê-lo. Mas que tipo de vida ela podia transmitir? Descobrimos que comer da árvore da vida significaria viver para sempre (Gn 3:22). Entendemos assim que humanidade não foi criada imortal. Acrescente-se a essa mortalidade um terrível estado subsequente, isto é: condição de caído-pecador.

Expulsão do Jardim: A expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden reflete a doutrina da queda e da expulsão da presença imediata de Deus. Essa ação divina simboliza o afastamento da humanidade de Deus devido ao pecado. Segundo John Gill's, Deus “deu-lhe ordens para partir imediatamente; enviado ou colocá-lo longe quando um homem faz sua esposa, quando ele se divorcia; ou como príncipe bani um rebelde” (Gill's, 2011)

O evento de Gênesis 3, em geral, é citado como a “Queda”. Trata-se de uma expressão estranha. Para começar, eles caíram ou saltaram? Cair é algo que, geralmente, acontece de modo imprevisto; a serpente atravessou o caminho deles para fazê-los tropeçar, mas a decisão de agir daquela maneira coube aos dois.

O Antigo e o Novo Testamentos não usam a palavra “queda” para descrever o que aconteceu. Segundo John Gondingay, o termo deriva de um livro judaico, do período do Novo Testamento, chamado 2Esdras, que aparece nos textos apócrifos ou deuterocanônicos aceitos por algumas igrejas. Esdras comenta sobre o fato de que, apesar de ter pecado sozinho, sua “queda” da possibilidade de imortalidade afetou a todos nós (2Esdras 7:118). Isso representa uma implicação-chave de Gênesis 2 e 3. As pessoas precisavam comer da árvore da vida para viver eternamente; a desobediência do primeiro casal significou a perda da possibilidade à imortalidade, e esse ato afetou a todos que vieram posteriormente. Um pouco antes de 2Esdras ser escrito, Paulo, em Romanos 5, expressa o mesmo ponto sem utilizar a palavra “queda”. (Gondingay, 2021)

O termo וישׁלּחהוּ é mais forte do que “enviar”, usado no v. 22. É frequentemente usado no Pentateuco para a expulsão dos habitantes de Canaã (por exemplo, Êxodo 23:28-31). Está associado a “enviar” em Êxodo 6:1; 11:1, e em cada caso acrescenta ênfase. Deus não apenas o enviou, um ato que não teria excluído qualquer possibilidade de seu retorno, mas Ele o expulsou - completamente

A árvore da vida é vista como um símbolo da comunhão com Deus e da vida eterna. A remoção do acesso à árvore da vida tem implicações profundas na compreensão da condição humana após a queda. Segundo Millard Ericson:

Embora a morte que ameaçava os seres humanos fosse, ao menos em parte, a morte espiritual, ao que tudo indica a morte física também estava incluída, visto que o homem e a mulher precisaram ser expulsos do jardim do Éden para que não comessem da árvore da vida e vivessem para sempre (Erickson, 2015, p. 1117)

Deus posiciona os querubins e a espada giratória de fogo a leste do jardim do Éden para evitar a reentrada no jardim, como se a reentrada no jardim fosse apenas através de uma abertura em seu lado leste, assim como a entrada no complexo do tabernáculo/templo era por um portão no lado leste. Nessa função, os querubins funcionam de maneira muito semelhante aos levitas posteriores, que são colocados como guardas ao redor do tabernáculo e que devem atacar qualquer pessoa que invada o santuário proibido (Nm 1:51, 53).

Finalmente, como bem resumiu Gordon J. Wenham, “aquele que foi designado para cultivar o jardim, em vez disso cultivará a terra, prenunciando assim o cumprimento da maldição “até que você retorne à terra de onde foi tirado, pois você é pó e ao pó deverá retornar” (3: 19).” (Wenham, 2017)

Desejo de Restauração: Apesar da expulsão, a passagem indica o desejo de Deus de evitar que Adão e Eva acessem a árvore da vida e vivam eternamente em estado pecaminoso. Isso sugere o plano de Deus para a restauração e a esperança de redenção futura.

Wayne Grudem sintetiza muito bem essa doutrina da Restauração da seguinte forma:

Quando ressuscitarmos, seremos homens e mulheres que viverão para sempre no novo céu e na nova terra, na qual há de habitar a justiça (2Pe 3.13). Viveremos em uma terra renovada que será liberta da escravidão à corrupção (Rm 8.21) e será como um novo jardim do Éden. (...) lá haverá “o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro.” Nesse universo bem físico, material e renovado aparentemente precisaremos viver como seres humanos com corpos físicos, adaptados para a vida na criação física renovada de Deus. Falando de modo específico, o corpo ressurreto de jesus afirma a bondade da criação original do homem por Deus não como mero espírito, como os anjos, mas como uma criatura com um corpo físico que era “muito bom”. (Grudem, 1999, p. 513)

 

7.3. CARACTERÍSTICAS SEMÁTICAS ESPECIAIS

 

Uso de Pluralidade: O uso do plural em "Como um de nós" (Gênesis 3:22) é notável. Deus fala em primeira pessoa do plural, o que levanta questões teológicas e tem sido interpretado de várias maneiras. Alguns veem isso como uma sugestão da Trindade, com Deus se referindo ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Outros interpretam isso como uma referência a uma assembleia celestial ou ao uso de pluralidade majestática. Esse uso do plural é uma característica semântica especial que gera discussão e interpretações diversas.

Além do exposta acima, segundo George Herbert Livingston, “há um toque de ironia na observação divina de que este casal humano é como um de nós (22). A preposição “de” - מֵ - destaca uma nítida distinção entre Deus e o homem em vez de mostrar identidade. Está em contraste com como um, que denota unidade.” (Livingston, 2009)

“Leste do jardim.” Por que os querubins deveriam estar aqui? Segundo Gordon J. Wenham “mais uma vez, nos é lembrado a orientação do tabernáculo e do templo, onde se entrava pelo Leste.” Assim, no último versículo da narrativa há uma concentração notável de símbolos poderosos que podem ser interpretados à luz do projeto posterior do santuário. Outras características deste jardim – rios, ouro, pedras preciosas – que são igualmente evocativas foram mencionadas na primeira cena. Todas essas características se combinam para sugerir que o jardim do Éden era uma espécie de santuário arquetípico, onde Deus estava presente de forma única em todo o seu poder vivificante. Foi isso que o homem perdeu quando comeu a fruta. (Wenham, 2017)

Uso da expressão לִשְׁמֹר (Guardar): O uso de "guardar" sugere a ideia de proteger ou restringir o acesso à árvore da vida. Deus coloca os querubins e a espada flamejante para impedir que Adão e Eva retornem e comam da árvore da vida, o que garantiria a continuação de uma vida pecaminosa e separada de Deus.

Vemos um duplo propósito: punir e preservar. A espada flamejante é frequentemente vista como um símbolo do juízo e da santidade de Deus. A ação de guardar a árvore da vida com uma espada flamejante simboliza a seriedade das consequências do pecado e a necessidade de redenção. Quando Deus, de acordo com Hansjörg Bräumer, acaba de uma vez por todas com o acesso à arvore da vida, “isso foi um ato de graça, não um ato brutal e arbitrário” (Brãumer, 2006). Para o ser humano a maior tortura seria tornar-se imortal no estado em que ficou depois de afastar-se de Deus, pois ele não suportaria uma vida eterna sob a condenação de Deus.

“A chama de uma espada giratória.” Esta frase não tem paralelo exato no AT, mas o fogo é um símbolo regular da presença de Deus, especialmente no julgamento (por exemplo, Êx 19:18; Sl 104:4). “Girar”, é o particípio Hithpael de “girar”, portanto, “girar a si mesmo”. É usado para o bolo que “rolou” para o acampamento de Midiã em Juízes 7:13. Gordon J. Wenham parece entender que a imagem é a de um relâmpago bifurcado, ziguezagueando de um lado para outro. De qualquer forma, a ideia é clara: uma espada giratória ou em ziguezague, especialmente aquela empunhada por anjos, é aquela que certamente atingirá e trará a morte (cf. Nm 22:23, 31, 33). “Para guardar o caminho para a árvore da vida”

Temos também um exemplo de uso da figura de linguagem chamada “Aposiopese”. Para evitar qualquer tentativa do homem obter a vida eterna na situação em que estava, Deus diz: “Agora, para que ele não estenda a mão e tire da árvore da vida. . . .” A frase termina no ar, deixando o ouvinte fornecer o resto dos pensamentos de Deus, por exemplo, “Deixe-me expulsá-lo do jardim”. De acordo com Gordon J. Wenham, este dispositivo de aposiopese é muito incomum no relato da fala divina em hebraico. Geralmente os narradores gostam de relatar o cumprimento exato e completo das palavras de Deus. Aqui a omissão da conclusão transmite a rapidez da ação de Deus. Ele mal tinha terminado de falar quando foram mandados para fora do jardim. “Tire da árvore da vida” parece implicar que enquanto estava no jardim o homem poderia ter comido da árvore, mas não o fez. (Wenham, 2017)

Por fim há um jogo de palavras nas palavras לֻקַּ֖ח (lāqaḥ) e שְׁלַ֨ח (šālaḥ). Segundo Victor Hamilton, “Deus estava preocupado que o homem pudesse “estender” (šālaḥ) sua mão; então Deus o expulsou ou colocou fora (šālaḥ) do jardim. O mesmo verbo hebraico designa o que o homem poderia fazer e o que Deus fez (embora o radical usado no v. 22 seja Qal e o usado no v. 23 seja Piel).

Outro verbo repetido nos vv. 22 e 23 é “tomar” – “para que ele...” tome [lāqaḥ no Qal] também da árvore da vida” e “a terra da qual ele foi tirado [lāqaḥ no Pual]”.” (Hamilton, 1990)

 

8.    APLICAÇÃO

8.1. A NATUREZA DA APLICAÇÃO NO TEXTO

O nosso texto em estudo apresenta uma natureza informativa de aplicação na qual através da narrativa o texto nos apresenta o ápice das consequências do pecado humano:  Expulsão do Jardim do Édem. Segundo Hernandes Dias Lopes, “o jardim deixou de ser o seu lar hospitaleiro para ser apenas o palco de seu fracasso. A expulsão é por decreto. Deus expulsou Adão e Eva do jardim purificando, assim, seu templo-jardim” (Lopes, 2021).

Em um discurso incrivelmente irônico, Deus nota a maldição causada pelo fato de terem comido do fruto, e impossibilita o casal de um pecado futuro, que seria comer o fruto da árvore da vida. O casal é expulso do jardim para descobrir um caminho próprio, no mundo ordinário.

Nosso texto também nos informa da graça de Deus que, ao criar mecanismos que inibissem o homem de tomar da árvore da vida, evitava uma condição caída eternamente. Como bem sintetizou Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, “o Deus soberano toma providências para evitar que o homem pecaminoso tenha acesso à vida eterna enquanto debaixo de maldição” (Pinto, 2008).

8.2. ÁREAS DE APLICAÇÃO DA PASSAGEM

Nosso texto contem apenas uma área de aplicação, isto é, nos ensinam como devemos crer (Fé). No entando, disso, podemos extrair diversas aplicações para nossa vida. E uma das aplicações que podemos extrair desse texto é o fato dele nos apontar Deus como aquele que pune o pecado dos seres humanos. Como bem atentou Warren W. Wiersbe:

Para o homem e a mulher, a vida diária passaria a ser uma luta fora do jardim ao labutar pelo pão e criar sua família. Ainda poderiam ter comunhão com Deus, mas sofreriam diariamente as consequências de seu pecado, e o mesmo aconteceria com seus descendentes, (tudo isso por conta do pecado – grifos meus) (Wiersbe, 2006)

A ideia da queda vem junto com a noção de que vivemos num mundo decaído. A desobediência humana (dar ouvidos à serpente em lugar de exercer autoridade sobre ela) significou sujeitar a Criação à futilidade, de modo que ela anseia e geme por sua redenção (Romanos 8:19-22). Gênesis 1, todavia, com sua comissão à humanidade, sugere que isso não significou a ruína de sua perfeição. Considerando que a humanidade foi criada para atingir determinado objetivo, a sua falha significou que ela se desviou desse alvo. Não vivemos num mundo decaído; vivemos num mundo que ainda não alcançou o seu destino.

Outro ponto importante é que, em meio às punições divinas, podemos ver um raio da Graça de Deus. Quando Deus, porém, acaba de uma vez por todas com o acesso à arvore da vida, isso foi um ato de graça, não um ato brutal e arbitrário. Para o ser humano, a maior tortura seria tornar-se imortal no estado em que ficou depois de afastar-se de Deus, pois ele não suportaria uma vida eterna sob a condenação de Deus. (Brãumer, 2006)

Um dia, Jesus Cristo reabriria o caminho para a "Árvore da Vida" mediante sua morte na cruz (Ap 2:7; 22:1, 2, 14, 19). Como bem notou Warren W. Wiersbe “o primeiro Adão era ladrão e foi expulso do paraíso. O Último Adão, quando estava pendurado na cruz, disse a um ladrão: "Hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23:43).” (Wiersbe, 2006)

8.3. LIMITES DA APLICAÇÃO DA PASSAGEM

Importante destacarmos que, o fato de os seres humanos terem sido expulsos do jardim possuidores de um “conhecimento do bem e do mal”, não prova que essa expulsão tem um caráter definitivo tornando os seres humanos parecidos em gênero com Satanás.

No versículo 22, diz o Senhor Deus: “Agora o homem se tornou como um de nós”. Será que a expressão “um de nós” implica a existência de mais de um Deus? Com certeza e de modo algum o texto quer nos passar essa ideia. Segundo Gleason Archer, “a oração funciona como qualificativo, isto é - vocês serão como Deus, uma vez que terão conhecimento pessoal da lei moral e a distinção que ela faz entre o bem e o mal”. (Archer, 2006). Esse mesmo autor continua, “Adão e Eva não mais se encontrariam em estado de inocência, mas teriam uma experiência culposa do mal, de forma que, nesse ponto, estariam mais perto de Deus e de seus anjos no que concerne à inteira consciência moral” (Archer, 2006).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9.    REFERÊNCIAS

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[1] Ana Luíza Mello Santiago de Andrade é Graduada em História (Udesc, 2010), Mestre em História (Udesc, 2013) e Doutora em História (USP, 2018). Artigo “Idade do Bronze” presente no site: https://www.infoescola.com/historia/idade-do-bronze/

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