Uma Análise do Final de Marcos (Mc 16:9-20)

 

Apresentação

 

A autenticidade dos versículos 9 a 20 do capítulo 16 de Marcos é uma das questões que, até hoje, tem dividido os grandes eruditos da Crítica do texto grego do Novo Testamento. Muitas traduções modernas indicam, de um modo ou de outro, que há uma dúvida considerável a respeito de sua autenticidade.

Desde estudiosos considerados liberais até dentre os que são tidos como ortodoxos, há desacordos entre os mesmos; por exemplo, D.A Carson, Leon Morris e Douglas Moo, admitem que “os argumentos contra a originalidade desse final são bastante fortes. (...) está faltando em dois manuscritos considerados os dois manuscritos mais antigos. (...) o final longo não flui naturalmente após 16:8. (...) O evangelho de Marcos caracteriza-se por certo clima de segredo e omissão de dados. Concluir com uma proclamação direta do fato da ressurreição (v.6) e da surpresa e do medo resultantes (...) não seria para Marcos algo conflitante com seus propósitos” (Carson, Moo, & Morris, 1997), dessa forma, devemos sempre ter em mente que essa não é uma questão central no que diz respeito à salvação.

A. T. Robertson, comentado a respeito do trecho “Anunciou-o àqueles que tinham estado com ele” em 16:10, diz: “Esta frase para os discípulos aparece só aqui em Marcos e nos outros Evangelhos, caso estejam em vista os discípulos. As formas gregas discrepantes dão a entender que outra pessoa, que não Marcos, escreveu esta porção final dos versículos 9 a 20” (Robertson, 2011).  

 

O questionamento da autenticidade do final de Marcos

 

O questionamento da autenticidade dos versos 9-20 do Evangelho de Marcos foi seguido por Lachmann (1793-185), Tregelles (1813-1875), Tischendorf (1815-1874), Alford (1810-1871) e Westcott-Hort, entre outros, no século XIX.” (Anglada, 2014), por outro lado, Anglada afirma que “a maioria dos críticos textuais anteriores a Westcott-Hort não foi persuadida da inautenticidade do final longo de Marcos” (Anglada, 2014). Esse dado, segundo Leonard Bloomfield, é fortemente confirmado por Scholz, que “depois de todas as suas extensivas pesquisas, nunca foi capaz de descobrir essa porção [Marcos 16:9-20] omitida em mais de um manuscrito e uma única versão” (Bloomfield, 1841)[1]. No entanto, a nosso ver, há mais fortes e melhores argumentos para crermos no final mais longo do Evangelho de Marcos.

Segundo Metzger, o final longo de Marcos, apesar de presente em muitos manuscritos, alguns antigos, foi rejeitado, também, com base nas evidências internas por duas razões: “(1) o vocabulário e o estilo dos versos 9-20 são não-marcanos; e, (2) a conexão entre os versos 8 e os versos 9-20 é difícil.” (Metzger, 2006)[2], No entanto, de acordo com Anglada, “Esses argumentos já foram refutados por vários especialistas, tais como Burgon e J. A. Broadus no século XIX, e Pickering, Farmer, Terry e Robinson, recentemente” (Anglada, 2014), sendo que, pelo contrário, as evidencias internas coadunam-se com o final longo.

De acordo com Paulo Anglada, existem cinco possibilidades principais para o final do Evangelho de Marcos que encontram algum suporte textual:

“(1) O final longo, tradicionalmente presente nas traduções do Novo Testamento, incluindo os versos 9-20, encontrado na grande maioria dos manuscritos. (2) O final longo, contendo uma interpolação entre os versos 14 e 15, conhecida como Freer-Logion (presente apenas no uncial W). (3) O final curto, presente no Códice Bobbiensis:” contudo, eles relataram brevemente a Pedro e aos que estavam com ele tudo o que lhes fora dito. E, depois disso, o próprio Jesus enviou por meio deles, do oriente até o ocidente, a sagrada e imperecível proclamação da salvação eterna”. (4) Os dois finais, longo e curto, presentes em quatro unciais, dois minúsculos, um lecionário e quatro versões. E (5) O final abrupto, no verso 8: ἐφοβοῦντο γάρ (principalmente nos unciais e B), defendido atualmente pela maioria dos críticos textuais.” (Anglada, 2014).

Os códices Vaticano () e Sinaítico (B) são as principais testemunhas do final abrupto de Marcos; de forma que a preferência pela omissão de Marcos 16:9-20 se deve ao testemunho desses unciais, e assim, é com base nessas fontes que a maioria das edições críticas do Novo Testamento Grego terminam Marcos no versículo 8.

Entretanto, segundo Anglada, “Mesmo o testemunho do códice B é incerto. Escrito em três colunas, ele deixa uma coluna vaga entre o final de Marcos (no verso 8) e o início de Lucas, embora normalmente comece os livros no início da próxima coluna, sugerindo que o seu escriba tinha ciência de que o livro poderia não terminar nesse ponto” (Anglada, 2014), contrariando o costume da economicidade nos materiais.

Esse mesmo autor nos alerta para o fato de que a qualidade, quanto a ausência de erros, de um manuscrito não está necessariamente ligado à sua antiguidade, segundo esse autor, o papiro p47 (um dos mais antigos manuscritos do Novo Testamento) não é considerado um bom manuscrito; “Aland reconhece isso, ao escrever: Não precisamos mencionar o fato de que o manuscrito mais antigo não apresenta necessariamente o melhor texto. P47, por exemplo, de longe o mais antigo dos manuscritos contendo o texto completo ou quase completo de Apocalipse, certamente não é o melhor[3] (Anglada, 2014), mais a frente Anglada comenta: “Quanto aos papiros, tanto o Chester Beatty (p45, p46 e p47), como o Bodmer (p66 e p75), apesar da antiguidade, como já indiquei, apresentam centenas de alterações deliberadas e leituras singulares, muitas delas deixando o texto sem sentido, comprometendo consideravelmente a sua confiabilidade” (Anglada, 2014)

De acordo com Paulo Anglada (Anglada, 2014), Eusébio de Cesaréia (339 d. C.) usa Marcos 16:9 para responder a uma problemática acerca da Ressurreição de nosso Senhor, dessa forma apresentando um forte argumento a favor da existência, utilização e autenticidade desse versículo. Da mesma forma, de acordo com Paulo Anglada, Victor-Antioch (Séc. V) “afirma ter verificado muitas cópias acuradas que continham estes versos, e defende a genuinidade deles. O testemunho patrístico mais antigo dá suporte a inclusão do final longo[4], como os de Justino Mártir e Irineu” (Anglada, 2014).

Na sua Apologia, Justino Mártir, ecoa Marcos 16:20, ao dizer: “saindo de Jerusalém, os apóstolos pregaram por toda parte” (Justino, 159), e podemos perceber ecos de Marcos 16:18, ao dizer: “E se também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de matar-nos, como já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum dano causará.” (Justino, 159)

James R. Edwards, em seu comentário no livro de Marcos, nos mostra como é fácil vermos uma semelhança entre o final de Mateus com o final longo de marcos, de forma que não seria estranho o mesmo ser originário da pena do evangelista. Além disso, segundo Edwards, “Há, por tanto, motivo considerável para duvidar que 16.8 foi a conclusão pretendida para o evangelho de Marcos. Minha opinião é que provavelmente não foi. Provavelmente jamais saberemos o que poderia ter acontecido ao final original. A sugestão mais plausível é que foi perdido devido ao desgaste da última página do códice.” (Edwards, 2018), e, em outro lugar, o mesmo diz: “é difícil imaginar um evangelho que começa com um anúncio ousado e retumbante da filiação divina (1.1) terminar com uma nota de temor e pânico (16.8).” (Edwards, 2018). Coadunando com essa opinião, Paulo Anglada afirma:

“O testemunho em favor do final curto de Marcos é tão insignificante que ninguém sustenta a sua originalidade. Entretanto, defensores do final abrupto em 16:8 geralmente argumentam que o final curto representa uma evidência adicional em favor do final abrupto, visto que ele deve ter sido criado para prover uma conclusão satisfatória para esse Evangelho. Isso, entretanto, não é necessário. Robinson[5] sugere, à luz do uso conjunto dos dois finais em alguns manuscritos, que o final breve pode ter sido criado como uma conclusão alternativa ao final longo, apropriada para leituras litúrgicas, anteriormente ao surgimento dos lecionários.” (Anglada, 2014)

Além disso, Burgon[6] também ressalta que Marcos 16:9-20 era usado, desde o início da prática do uso dos lecionários, como lição lida por ocasião das duas maiores festividades eclesiásticas da época: a Páscoa e a Ascensão, assim, levando em consideração que Marcos 16:9-20 estava bem estabelecido nas liturgias dos primeiros séculos, teria se tornado mais difícil para os copistas omitir esses versos das suas cópias de Marcos.

Assim, perceptível fica que os versículos 9 a 20 do capítulo 16 de marcos, constitui-se em “um resumo interessante de alguns dos aparecimentos do Salvador ressurreto e de sua subsequente ascensão a mão direita de Deus. Como tal, ela e instrutiva, pois nos mostra a visão da Igreja primitiva em relação a esses assuntos.” (Hendriksen, 2003).

Concluindo a análise dessa questão, J. C. Thomas ressalta[7]:

“A evidência externa para a leitura mais longa é antiga e tem boa representação das famílias textuais. O testemunho bizantino inclui A, E, H, K e P. As testemunhas cesareenses incluem W, f13, 28, 565 e 700. As testemunhas ocidentais incluem D e o Diatessarão de Taciano. Os textos alexandrinos estão representados por C 892 Copta (Saídica e Boaírica). A, C, D e W, todos datam do quinto século, enquanto as versões coptas Saídica e Boaírica datam dos séculos terceiro e quarto respectivamente, com o Diatessarão de Taciano retrocedendo até cerca de 170. O peso de tal testemunho é bastante impressionante e deve meramente pelo volume, variedade e data justificar consideração adicional, [do final de Marcos].” (Thomas, 1983).

Além disso,” Uma das maiores dificuldades internas para a omissão dos versos 9-20 do último capítulo de Marcos, diz respeito ao final, semântica e gramaticalmente abrupto, que resulta com o encerramento do livro no verso 8. Parece muito mais difícil explicar como um livro pode terminar com as palavras ἐφοβοῦντογάρ (porque temiam), do que quaisquer das dificuldades internas apresentadas contra a genuinidade dos versos 9-20.” (Anglada, 2014) Por outro lado, o fato de haver uma multiplicidade de sugestões diferentes que expliquem o motivo desse fim incongruente, dá-nos uma indicação do quão estranho seria o fim do livro no versículo 8.

 

Conclusão

 

Diante de tudo isso, vale sempre lembrar que essa não é uma “questão de fogueira”. Ficamos com a advertência repassada por William Hendriksen: “Se começarmos a pensar que o conflito de opinião é entre “ortodoxia” e “liberalismo” (ou “modernismo”), estaremos errados. Embora muitos, que nao podem ser contados entre os conservadores, rejeitem a hipótese de que esses versículos foram escritos por Joao Marcos, ninguém menos que um campeão da fé ortodoxa, o falecido Dr. N. B. Stonehouse, também os rejeita. Num comentário, deve haver um espaço para a discussão das muitas posições mantidas em relação a esse tópico.” (Hendriksen, 2003)

 

 

 

 

Bibliografia

Anglada, P. (2014). Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos. Ananindeua – PA: Knox Publicações.

Bloomfield, S. T. (1841). Ἡ ΚΑΙΝΗ ΔΙΑΘΗΚΗ: The Greek Testament with Notes. London: Longman.

Carson, D., Moo, D. J., & Morris, L. (1997). Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova.

Edwards, J. R. (2018). O comentário de Marcos. São Paulo: Shedd Publicações.

Hendriksen, W. (2003). Comentário do Novo Testamento, Exposição do Evangelho de Marcos. São Paulo: Editora Cultura Cristã.

Justino. (159). Apologia. São Paulo: Paulus Editora.

Metzger, B. M. (2006). A Textual Commentary on the Greek New Testament. Swindon: United Bible Societies.

Robertson, A. T. (2011). Comentário de Mateus e Marcos à luz do Novo Testamento Grego. Rio de Janeiro: CPAD.

Thomas, J. C. (1983). A Reconsideration of the Ending of Mark. JETS, 409.

 



[1] Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

[2] Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

[3] Aland, “The Significance of the Papyri for Progress in New Testament Research, 333.

[4] Robinson, The Long Ending of Mark as Canonical Verity, 46. Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

[5] Robinson, The Long Ending of Mark as Canonical Verity, 58-59. Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

[6] Burgon, The Last Twelve Verses of the Gospel According to S. Mark, capítulo 10. Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

[7] Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014

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