Uma Análise do Final de Marcos (Mc 16:9-20)
Apresentação
A autenticidade dos versículos 9 a 20 do capítulo 16 de
Marcos é uma das questões que, até hoje, tem dividido os grandes eruditos da
Crítica do texto grego do Novo Testamento. Muitas traduções modernas indicam,
de um modo ou de outro, que há uma dúvida considerável a respeito de sua
autenticidade.
Desde estudiosos considerados liberais até dentre os que são
tidos como ortodoxos, há desacordos entre os mesmos; por exemplo, D.A Carson,
Leon Morris e Douglas Moo, admitem que “os argumentos contra a originalidade
desse final são bastante fortes. (...) está faltando em dois manuscritos
considerados os dois manuscritos mais antigos. (...) o final longo não flui naturalmente
após 16:8. (...) O evangelho de Marcos caracteriza-se por certo clima de
segredo e omissão de dados. Concluir com uma proclamação direta do fato da
ressurreição (v.6) e da surpresa e do medo resultantes (...) não seria para
Marcos algo conflitante com seus propósitos”
A. T. Robertson, comentado a respeito do trecho “Anunciou-o
àqueles que tinham estado com ele” em 16:10, diz: “Esta frase para os
discípulos aparece só aqui em Marcos e nos outros Evangelhos, caso estejam em
vista os discípulos. As formas gregas discrepantes dão a entender que outra
pessoa, que não Marcos, escreveu esta porção final dos versículos 9 a 20”
O questionamento da autenticidade do
final de Marcos
O questionamento da autenticidade dos versos 9-20 do
Evangelho de Marcos foi seguido por Lachmann (1793-185), Tregelles (1813-1875),
Tischendorf (1815-1874), Alford (1810-1871) e Westcott-Hort, entre outros, no século
XIX.”
Segundo Metzger, o final longo de Marcos, apesar de presente
em muitos manuscritos, alguns antigos, foi rejeitado, também, com base nas evidências
internas por duas razões: “(1) o vocabulário e o estilo dos versos 9-20 são não-marcanos;
e, (2) a conexão entre os versos 8 e os versos 9-20 é difícil.”
De acordo com Paulo Anglada, existem cinco possibilidades
principais para o final do Evangelho de Marcos que encontram algum suporte
textual:
“(1) O final
longo, tradicionalmente presente nas traduções do Novo Testamento, incluindo os
versos 9-20, encontrado na grande maioria dos manuscritos. (2) O final longo,
contendo uma interpolação entre os versos 14 e 15, conhecida como Freer-Logion
(presente apenas no uncial W). (3) O final curto, presente no Códice Bobbiensis:”
contudo, eles relataram brevemente a Pedro e aos que estavam com ele tudo o que
lhes fora dito. E, depois disso, o próprio Jesus enviou por meio deles, do
oriente até o ocidente, a sagrada e imperecível proclamação da salvação
eterna”. (4) Os dois finais, longo e curto, presentes em quatro unciais, dois
minúsculos, um lecionário e quatro versões. E (5) O final abrupto, no verso 8: ἐφοβοῦντο γάρ (principalmente nos
unciais ℵ e B), defendido
atualmente pela maioria dos críticos textuais.”
Os códices Vaticano (ℵ)
e Sinaítico (B) são as principais testemunhas do final abrupto de Marcos; de
forma que a preferência pela omissão de Marcos 16:9-20 se deve ao testemunho
desses unciais, e assim, é com base nessas fontes que a maioria das edições críticas
do Novo Testamento Grego terminam Marcos no versículo 8.
Entretanto, segundo Anglada, “Mesmo o testemunho do códice B
é incerto. Escrito em três colunas, ele deixa uma coluna vaga entre o final de
Marcos (no verso 8) e o início de Lucas, embora normalmente comece os livros no
início da próxima coluna, sugerindo que o seu escriba tinha ciência de que o
livro poderia não terminar nesse ponto”
Esse mesmo autor nos alerta para o fato de que a qualidade,
quanto a ausência de erros, de um manuscrito não está necessariamente ligado à
sua antiguidade, segundo esse autor, o papiro p47 (um dos mais antigos
manuscritos do Novo Testamento) não é considerado um bom manuscrito; “Aland
reconhece isso, ao escrever: Não precisamos mencionar o fato de que o
manuscrito mais antigo não apresenta necessariamente o melhor texto. P47, por
exemplo, de longe o mais antigo dos manuscritos contendo o texto completo ou
quase completo de Apocalipse, certamente não é o melhor[3]”
De acordo com Paulo Anglada
Na sua Apologia, Justino Mártir, ecoa Marcos 16:20, ao
dizer: “saindo de Jerusalém, os apóstolos pregaram por toda parte”
James R. Edwards, em seu comentário no livro de Marcos, nos
mostra como é fácil vermos uma semelhança entre o final de Mateus com o final
longo de marcos, de forma que não seria estranho o mesmo ser originário da pena
do evangelista. Além disso, segundo Edwards, “Há, por tanto, motivo considerável
para duvidar que 16.8 foi a conclusão pretendida para o evangelho de Marcos.
Minha opinião é que provavelmente não foi. Provavelmente jamais saberemos o que
poderia ter acontecido ao final original. A sugestão mais plausível é que foi
perdido devido ao desgaste da última página do códice.”
“O testemunho em
favor do final curto de Marcos é tão insignificante que ninguém sustenta a sua
originalidade. Entretanto, defensores do final abrupto em 16:8 geralmente
argumentam que o final curto representa uma evidência adicional em favor do
final abrupto, visto que ele deve ter sido criado para prover uma conclusão
satisfatória para esse Evangelho. Isso, entretanto, não é necessário. Robinson[5]
sugere, à luz do uso conjunto dos dois finais em alguns manuscritos, que o
final breve pode ter sido criado como uma conclusão alternativa ao final longo,
apropriada para leituras litúrgicas, anteriormente ao surgimento dos lecionários.”
Além disso, Burgon[6]
também ressalta que Marcos 16:9-20 era usado, desde o início da prática do uso
dos lecionários, como lição lida por ocasião das duas maiores festividades
eclesiásticas da época: a Páscoa e a Ascensão, assim, levando em consideração
que Marcos 16:9-20 estava bem estabelecido nas liturgias dos primeiros séculos,
teria se tornado mais difícil para os copistas omitir esses versos das suas cópias
de Marcos.
Assim, perceptível fica que os versículos 9 a 20 do capítulo
16 de marcos, constitui-se em “um resumo interessante de alguns dos
aparecimentos do Salvador ressurreto e de sua subsequente ascensão a mão
direita de Deus. Como tal, ela e instrutiva, pois nos mostra a visão da Igreja
primitiva em relação a esses assuntos.”
Concluindo a análise dessa questão, J. C. Thomas ressalta[7]:
“A evidência
externa para a leitura mais longa é antiga e tem boa representação das famílias
textuais. O testemunho bizantino inclui A, E, H, K e P. As testemunhas
cesareenses incluem W, f13, 28,
565 e 700. As testemunhas ocidentais incluem D e o Diatessarão de Taciano. Os
textos alexandrinos estão representados por C 892 Copta (Saídica e Boaírica).
A, C, D e W, todos datam do quinto século, enquanto as versões coptas Saídica e
Boaírica datam dos séculos terceiro e quarto respectivamente, com o Diatessarão
de Taciano retrocedendo até cerca de 170. O peso de tal testemunho é bastante
impressionante e deve – meramente pelo
volume, variedade e data – justificar consideração
adicional, [do final de Marcos].”
Além disso,” Uma das maiores dificuldades internas para a
omissão dos versos 9-20 do último capítulo de Marcos, diz respeito ao final,
semântica e gramaticalmente abrupto, que resulta com o encerramento do livro no
verso 8. Parece muito mais difícil explicar como um livro pode terminar com as
palavras ἐφοβοῦντογάρ (porque
temiam), do que quaisquer das dificuldades internas apresentadas contra a
genuinidade dos versos 9-20.”
Conclusão
Diante de tudo isso, vale sempre lembrar que essa não é uma “questão
de fogueira”.
Ficamos com a advertência repassada por William Hendriksen: “Se começarmos a
pensar que o conflito de opinião é entre “ortodoxia” e “liberalismo” (ou
“modernismo”), estaremos errados. Embora muitos, que nao podem ser contados
entre os conservadores, rejeitem a hipótese de que esses versículos foram
escritos por Joao Marcos, ninguém menos que um campeão da fé ortodoxa, o
falecido Dr. N. B. Stonehouse, também os rejeita. Num comentário, deve haver um
espaço para a discussão das muitas posições mantidas em relação a esse tópico.”
Bibliografia
Anglada,
P. (2014). Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes
Textuais e o final de Marcos. Ananindeua – PA: Knox Publicações.
Bloomfield, S. T. (1841). Ἡ ΚΑΙΝΗ ΔΙΑΘΗΚΗ: The
Greek Testament with Notes. London: Longman.
Carson, D., Moo, D. J., & Morris, L. (1997). Introdução
ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova.
Edwards, J. R. (2018). O comentário de Marcos.
São Paulo: Shedd Publicações.
Hendriksen, W. (2003). Comentário do Novo
Testamento, Exposição do Evangelho de Marcos. São Paulo: Editora Cultura
Cristã.
Justino. (159). Apologia. São Paulo: Paulus
Editora.
Metzger, B. M. (2006). A Textual Commentary on
the Greek New Testament. Swindon: United Bible Societies.
Robertson, A. T. (2011). Comentário de Mateus e
Marcos à luz do Novo Testamento Grego. Rio de Janeiro: CPAD.
Thomas, J. C. (1983). A Reconsideration of the
Ending of Mark. JETS, 409.
[1] Citado em
ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes
Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
[2]
Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História,
Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
[3]
Aland,
“The Significance of the Papyri for Progress in New Testament Research, 333.
[4]
Robinson, “The Long Ending of Mark as Canonical
Verity”, 46. Citado em ANGLADA, Paulo.
Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de
Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
[5]
Robinson, “The Long Ending of Mark as Canonical
Verity”, 58-59. Citado em ANGLADA, Paulo.
Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de
Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
[6] Burgon, The
Last Twelve Verses of the Gospel According to S. Mark, capítulo 10. Citado em
ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes
Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
[7] Citado em ANGLADA, Paulo. Manuscritologia do Novo Testamento: História, Correntes Textuais e o final de Marcos, Knox Publicações. Ananindeua. 2014
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